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Entre o programa de TV e o exercício de pensar fiz a escolha certa

Reflexões sobre direitos dos cidadãos, mídia e controle social

Por Isabella Barbosa





Nos últimos anos tem havido um movimento por parte de telespectadores de abandono da grande mídia em busca de TVs pagas, cujas possibilidades atendem aos mais diversos gostos e intenções. A despeito desse movimento, as TVs abertas ainda têm uma audiência bastante expressiva, até porque a migração não cabe no bolso de todos. Ainda é grande a visibilidade de seus programas, tais como os que mesclam informações e entretenimento. Diante de um deles, experimentei a sensação clara do poder que exercem sobre os seus telespectadores.
Uma das reportagens de destaque em um desses programas mostrava o recente confronto entre a polícia e um grupo de, aproximadamente, 200 famílias que resistiam à ordem de despejo de um hotel invadido por elas no centro de São Paulo há seis meses. A ordem para abandonar o lugar em nome da reintegração de posse não foi atendida e a confusão se instalou. O programa em questão usou como mote do discurso o abraço de um garotinho em um policial fardado, no momento em que o confronto acontecia. Ao ser entrevistado pela TV em questão, o menino afirmou ter feito isso para pedir ao policial que não jogasse bomba dentro do prédio, pois ali ainda estava o seu pai, de quem havia se perdido por causa do tumulto. E reportei-me à cena. Imaginei famílias inteiras - adultos, velhos e crianças desesperados em meio à desordem - tendo que sair do local em nome do direito à posse (ou à propriedade?) concedido ao possuidor.
Desde cedo somos ensinados que é inaceitável nos apropriarmos daquilo que não nos pertence, do que não temos direito. Saindo do senso comum, a posse - exteriorização do domínio - é um direito reconhecido pelo Código Civil Brasileiro e vilipendiá-lo resulta em ordenamento jurídico para privar da posse o que não tem poder sobre a coisa em questão. No caso de São Paulo, os invasores são os sem direito, pois não havia posse, mas detenção.
Na visão de muitos, essas pessoas são, no mínimo, desocupados ou preguiçosos, que deveriam estar buscando emprego em lugar de estar brigando pelo que não lhes pertence; ou são desordeiros, cuja ação, transformada em crime, deve ser coibida a qualquer custo. Mas quem são “essas pessoas”? Trata-se de integrantes da FLM – Frente de Luta por Moradia, um movimento social que nasceu em meados de 2003 e que tem como finalidade a “luta por moradia (...) que somam esforços para conquistar projetos habitacionais. Os movimentos que integram a Frente são comprometidos com a implantação de políticas sociais destinadas à população de baixa renda”, segundo o site do movimento.
 É certo que entremeados em muitos movimentos sociais há aqueles para os quais os problemas de falta de moradia, de terra, de saúde, de transporte não são os mais importantes, mas deles se aproveitam para fins politiqueiros ou de ganho próprio. No entanto, é impossível negar o valor social, histórico, político dos movimentos sociais, motor de importantes mudanças em nosso país, de conquistas para grupos sociais ou toda a sociedade, como no caso do movimento pelas eleições diretas no Brasil ou dos movimentos recentes que, apesar de não terem alcançado os fins expressos nos gritos de ordem, no mínimo, trouxeram consequências políticas que poderão ecoar nas urnas daqui a alguns dias. Inegavelmente, trata-se de um importante meio de reivindicação por GARANTIA DE DIREITOS!
O que salta aos olhos (de quem quer e consegue enxergar) é que ali não há só um direito em questão, o direito garantido ao proprietário. Há também em pauta o direito à moradia e junto com este, outros tantos, como direito ao trabalho que garanta sustento digno, à saúde, a educação (de qualidade), à alimentação necessária. Esses e outros são também garantidos pela carta magna, e quem trata deles? Quem os garantirá àquelas dezenas de pessoas, dentre as quais crianças e velhos que, distantes do sistema produtivo, não têm como trocar o resultado do trabalho por um abrigo digno?  Quem os garantirá àqueles brasileiros, muitos dos quais não tiveram acesso a uma educação formal que poderia garantir a continuidade nos estudos ou mesmo não tiveram acesso à formação profissional, caminhos para o distanciamento dos subempregos? Quem lhes garantirá acesso a empregos que lhes garantam o mínimo para o sustento devido ao ser humano? A condição em que se encontram é resultante de suas escolhas? O direito do proprietário foi garantido, afinal, há a posse em jogo! E quanto aos demais... o que está em jogo?
Pensei sobre tudo isso e continuo pensando, mas só pude fazê-lo porque neguei àquele programa o objetivo de continuar me guiando e abri a mente ao exercício de refletir. Foi preciso desligar a TV para que esse processo de reflexão acontecesse. Do contrário, eu teria enxugado as lágrimas após ver o choro do garotinho tomado como fio condutor da reportagem e que, também chorando, dizia fazer tudo de novo por amor ao pai. E após enxugar as lágrimas, teria talvez aberto um sorriso ao ver crianças engraçadinhas e com a aparência de felizes (diferente do garoto citado) que tomaria a vez e a atenção dos telespectadores (elas sempre aparecem!). E assim, de tema em tema, quadro a quadro seria conduzida a diferentes sensações: a indignação e revolta provenientes de injustiças retratadas; me emocionaria com alguma reportagem que teria isso como fim (elas nunca faltam!); lamentaria a mãe que perde o filho, o filho que perde a mãe; depois comemoraria o resultado do meu time de coração, sem que houvesse mais eco da indignação, da emoção, do lamento recém-experimentados. E, finalmente, dormiria após fazer uma oração pelo dia, talvez agradecida por estar do lado de cá da TV.
Pensei mais: se isso é próprio desse tipo de mídia, podemos atribuir somente a eles o resultado que geram? E quanto a nossa responsabilidade pela escolha? Sei que se estivesse diante de um texto escrito - um jornal, por exemplo - o exercício de refletir seria mais fácil, já que o controle do que virá caberia a mim (mesmo que não em sua plenitude, já que não decido o que será escrito nele).
Esta foi minha opção: desligando a TV pude realizar com mais clareza o exercício de pensar e agora exerço o direito de manifestação do pensamento (Art. 5º da Constituição Federal). E, pelo avanço da hora, vou dormir, não sem antes orar por "essas pessoas" e pedir a Deus cada vez mais clareza para continuar pensando e fazer as opções corretas. Já O louvo pela opção dessa noite.

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